A prenda
Conheci Casimiro Araújo no meu primeiro emprego. Eu era estagiário e cheio de receio do mundo de trabalho. Todos os colegas me pareciam super competentes, compenetrados no seu trabalho e extremamente profissionais. Ninguém saía ás 17h30m, apenas uns minutos depois e às 8h30m toda a gente estava a trabalhar.
Casimiro quando me conheceu foi muito efusivo. Agarrou-me a mão, que estendi quando me foi apresentado, com muita convicção, muita força, num cumprimento que se prolongou por momentos. Além dele, trabalhavam no departamento mais dois senhores e outras tantas senhoras. A chefiar encontrava-se a implacável D. Cidália. Cidália como a própria gostava de ser conhecida, sem Dona nem Doutora, apesar de o ser.
Ao rever o meu amigo Casimiro, no passado fim de semana, que alguns devem ter conhecido, ou pelo menos ter-se-ão com ele cruzado, lembrei-me de como as nossas vidas estão ligadas.
Apesar do bom relacionamento inicial, Casimiro era uma pessoa de trato difícil. De manhã, não. Era simpático. À tarde começava a ficar nervoso e não se relacionar com ninguém, só gritava, sempre atarefado no seu serviço. Às 17 horas era chamado ao gabinete da D. Cidália. Pouco se ouvia o que se passava lá dentro, um ou outro grito da chefe e pouco mais. Chegava a hora de sair e Casimiro ainda lá estava dentro.
O meu trabalho foi acumulando, a necessidade de permanecer mais tempo na firma também. Comecei a ficar mais meia hora e apanhava sempre o Casimiro a sair. Tentava meter-me com ele, o que vim a verificar ser contraprodecente: naquela hora, não havia palavras de apreço para ninguém, só gritos e até insultos, o que me indignava.
No dia seguinte, como se nada tivesse acontecido Casimiro relacionava-se outra vez com toda a gente, pedia desculpa pelo sucedido no dia anterior e voltava a ser amável. À sexta-feira não! Era um mau humor, o tempo todo, até à hora de saída, que neste dia ele cumpria escrupulosamente, 17h35m.
Fui criando uma imagem da directora de pessoa muito exigente e muito rigorosa com os seus colaboradores. Quando me chamava, eu temia a atribuição de um serviço que eu fosse incapaz de executar.
Uma 5ª-feira, na hora do costume Casimiro saiu do gabinete da D. Cidália e completamente enervado ligou para casa, dizendo à esposa que não ia jantar, que tinha de ficar a acabar um trabalho para o dia seguinte. Passado uns minutos despediu-se e foi embora.
Este ritual repetiu-se todas as 5ªs, durante algumas semanas. De inicio pensei que
Casimiro voltaria passado um pouco, ou à noite. Intrigado, um dia passei perto da firma, para esclarecer as minhas dúvidas e por fora vi as luzes todas apagadas, não estava ninguém. Tentei, no dia seguinte, esclarecer com um dos outros colegas aquela situação, a resposta foi: um dia perceberás!
Este enigma durou até que um dia, às 17 horas, o Casimiro não foi chamado ao gabinete da chefe, em seu lugar fui eu. Ouvi uma gargalhada nervosa na boca do Casimiro e um qualquer desabafo.
Lá dentro tudo correu bem. Atribuição de serviço acessível e alguns elogios da D. Cidália, que caíram bem a um jovem estagiário. No dia seguinte, a mesma situação. Sempre que saía, não estava ninguém do departamento.
Até que chegou a 5ª-feira... 17 horas, lá fui eu. Desta vez a D. Cidália estava diferente, mais descontraída. Sentou-se junto a mim na mesa redonda e por vezes tocava-me na mão. A certa altura desapertou o botão de cima da sua blusa, mostrando ligeiramente o decote. Não pude deixar de olhar e fiquei atrapalhado. Pensei que estaria com calor. Ingénuo. Perto das 18 horas, disse que gostaria de continuar o assunto mais tarde. Trabalho nocturno, pensei. De repente surgiu o convite para um jantar a dois, num restaurante relativamente afastado. Não podia recusar e lá fui.
No restaurante apareceu outra Cidália, mais descontraída, sem roupa de executiva, menos formal. Com o decote à vista. Estava diferente, dir-se-ia que estava ao engate. A bebida escorria da garrafa para os copos, a minha anfitriã aguentava bem. Eu já estava a ficar tonto e pensei que já sabia o que iria acontecer. No final da refeição, que eu fiz questão de pagar, no que não foi aceite, ficando pelo parcial então, agarrou-me na mão e ao ouvido propôs-me uma indecência. Ao ver-me naquela situação delicada, desatei a rir, soltando-me.
Nessa altura, numa escapatória previamente ensaiada, apareceu um amigo a chamar-me com um assunto urgente entre mãos, para o qual era necessário a minha intervenção.
Na manhã seguinte, Casimiro estava à minha na porta da firma, todo risonho. Percebi finalmente, a desgraça pela qual tinha passado o meu colega, se calhar, sem forma alguma de fugir ao assédio. Refazendo, eu tinha sido a oportunidade dele se tranquilizar, quando soube que nada tinha acontecido ficou sério.
Casimiro estava a contrato, tinha a esposa desempregada, sem subsídio e tinha um filho pequeno. Não queria perder o emprego, nem a família, por isso sujeitava-se aos ataques da D. Cidália.
Fui apresentar as desculpas à directora pelo desfecho da noite anterior e fiz de conta de não ter percebido o seu segredo. Ali, no departamento, D. Cidália era directora e obviamente aceitou as desculpas, dizendo não se lembrar bem do que eu estava a falar.
Na semana a seguir voltou o ritual das 17 horas. Na 5ª, a transformação em engatatona e quando o departamento estava vazio o convite. Procurei recusar, não aceitou. Pressionou-me, obrigou-me a ir. Tinha que encontrar outra forma de escapar à taradice da mulher. O jantar era no mesmo local e lá compareci à hora combinada. A meio do jantar, chegou-se uma amiga minha à mesa e admirada por me ver por ali, com uma grande lata, sentou-se e fez questão de nos acompanhar no jantar. Como pessoa educada, a D. Cidália foi incapaz de convidar a outra a sair. Verdade seja dita que nessa noite, estava bastante apresentável e eu como estava seguro, pude olhar para ela à vontade.
Na semana a seguir, às 17 horas, Casimiro volta a ser chamado... O homem olhou para mim, com uma cara de ódio!
Tudo recomeçou para ele. O final de tarde, a 5ª-feira. Enchi-me de coragem e fui falar com a Administração. Eu não tinha nada a perder. Surpresa! O caso era conhecido, só que na empresa não acontecia nada. Eu aceitara jantar com a senhora, por isso não podia apresentar qualquer tipo de denúncia.
Fiquei fulo. Tinha que tirar o Casimiro daquela pressão, mas como?
Não aceitaria substitui-lo. Tomar o lugar dele de assediado. Era mau de mais para começar a vida de trabalho.
Aproximava-se o Natal. Sugeri darmos uma prenda à chefe. Foi um espanto. Todos olharam para mim surpresos. Sem perceberem nada. Compreendi que sabiam de tudo. Um silêncio abafado pelo medo de verem a sua vida prejudicada. Percebi as palavras do colega, avisando-me que um dia eu perceberia, o que se passava com o Casimiro. Este não podia comigo, mal me encarava. A ideia do presente foi aceite e ofereci-me para comprar uma peça de design única.
Na tarde do último dia, antes das férias de Natal, pedimos à D. Cidália autorização para procedermos a um pequeno convívio, informando-a que tínhamos muito gosto em lhe oferecer uma prenda.
Lá compareceu com muito gosto. Desembrulhou a prenda. É uma linda de peça, disse. Todos estavam a concordar e a tentar advinhar o que era. Um candelabro moderno disseram as senhoras. A certa altura ouviu-se uma grande gargalhada do Casimiro.
- Isso é um vibrador duplo!!!
Todos olharam para o objecto de forma diferente, a D. Cidália também. Olhou para mim, com vontade de me estrangular. Fechou a caixa do presente, agradeceu e fechou-se no gabinete.
Casimiro ria-se sem perder fôlego. Os mais velhos estavam divertidos. As senhoras escandalizadas. Uma delas disse-me: que coragem,
Pedro!
(contributo para o 1º aniversário deste blog, que hoje se celebra)