Hora do conto: as compras
Deambulava pelos corredores do hipermercado, empurrando o carrinho à procura dos produtos que constavam da apropriada lista, timidamente escondida na mão esquerda, quando os meus olhos fitaram uma cara conhecida.
Não muito longe, à minha frente, estava a minha primeira namorada.
Sem perceber bem porquê, quase instintivamente, cortei logo à esquerda para uma qualquer artéria, de artigos semelhantes com marcas e cores diferentes, fingindo não ter reparado. Fiquei com a ligeira impressão de ter sido visto, por isso, coloquei-me em atalaia, em posição para me permitir de soslaio observar o entroncamento da corredor principal com a artéria em que me encontrava.
Esperei uns segundos e verifiquei que não me tinha enganado! O seu olhar permanecia fixo em qualquer ponto vago no fundo corredor, sem virar a cabeça, para o local onde me encontrava. A técnica de quem não quer ver. Ambos estávamos a jogar o mesmo jogo.
É certo que passaram muito anos. Provavelmente ela terá casado, tal como eu e possivelmente terá filhos. Seria mais fácil adoptar uma atitude de dois velhos conhecidos. Um cumprimento efusivo e depois das formalidades do presente, recordar o passado em comum. É evidentemente difícil ter abertura suficiente para recordar os momentos de sexo mantidos no passado. Os primeiros momentos. A virgindade a fugir, a inexperiência de adolescente. A atrapalhação do movimento. O gosto de correr riscos, característicos da juventude. Seria bom recordar episódios esquecidos, provavelmente confundir com situações vividas com outra parceira e usar aquela expressão "e daquela vez...". No final a despedida até um dia incerto, até qualquer dia, ou até à próxima.
Voltei para trás. Observei-a de costas. Como estaria agora o seu corpo? Diferente daquele que tinha tocado no passado, claramente. O mesmo corpo, com a transformação do passar dos anos: a celulite nas nádegas, nas pernas, as estrias conquistadas com a perda de massa, os músculos mais flácidos, a gordura acumulada em certas partes do corpo, as rugas indicando a passagem do tempo e claro, o aparecimento de cabelos brancos?
Virou à esquerda para a secção dos detergentes. Prossegui na procura dos artigos da lista de compras.
Tinha que a cumprimentar. Imaginei virar duas vezes à esquerda e entrar no mesmo corredor e aproximar-me, para fingindo surpresa, exclamar: Olha quem está por aqui! Há tanto tempo!
Arrisquei, ia correr bem! No momento da segunda viragem, parei! Provavelmente, estaria acompanhada. Marido ou filhos, ou outro familiar e por isso, não me queria enfrentar. Tudo menos os pais, que me detestavam! Não admira, a filha a entrar em casa a horas diferentes das habituais, a não dormir algumas noites, ou a receber-me às escondidas lá em casa.
Estava sozinha! Mas, estava a voltar para trás, por isso o meu plano tinha falhado.
Da minha lista faltavam dois produtos, do lado oposto à direcção por ela tomada. Segui para eles. Coloquei-os no carro de compras e decidi enfrentar o passado, sem compromisso para o presente e para o futuro. Sabia que tinha ficado mais alguma coisa, além do sexo desajeitado e juras de amor eterno, quebradas numas férias.
A ideia da infidelidade, a traição, o novo romance sempre lhe agradou. Se calhar ainda não tinha casado. Podia ter sido lesto a reparar nas suas mãos.
O telefone toca. O meu filho acrescenta um pedido à lista, alterando o meu rumo. Acrescentado o artigo extra aos restantes, procuro encontrá-la. Faço os corredores de uma ponta a outra. Costa a costa, duas vezes. Nada. Procuro nas caixas. É engraçado, vem-me à memória a primeira vez. Os corpos nus. Uma nudez total conquistada por etapas. Dessa vez, nem cuecas ficaram. Já chegava de brincadeiras, o desejo falou mais forte.
Chego à última caixa, nada! Volto para trás, percorro as caixas pela ordem numérica inversa. Focalizo cada pessoa de cada uma das filas. Não sei porque a recordei pela traição. Tive melhores experiências depois dela. Fui aperfeiçoando a dedicação aos outros, o romance e inevitavelmente o prazer associado ao momento sexual. Dar e receber. Tudo passado. Além disso, recordo que também me apaixonei por outras, tendo que terminar o namoro com uma fulana.
Primeira caixa e não há sinais dela. Desisto, coloco-me numa fila, com poucas pessoas. Paciência, perdi-a! Fico sem saber nada do que se passou com ela, ao longo destes anos todos.
Entalado na fila, vejo-a a passar já no lado das lojas. Olha para mim, mostra-se surpreendida por me ver, sorri, cumprimentando. Retribuo, a surpresa e o cumprimento. À minha frente o cliente junto à caixa não avança, um produto sem código de barras, por isso, sem preço marcado, empata-me no meio da fila. Não consigo alcançá-la. Faço um gesto, mostrando o meu desespero. Vendo a minha situação, a minha ex, a primeira namorada, encolhe os ombros e diz-me:
- Tenho pressa, tenho gente à espera!
Tento reagir. Abandonar ali o carrinho, passar para o outro lado, voltar atrás, sair pela passagem destinada a clientes sem compras. Chamo-a.
Olha para trás e sem intenção de esperar, responde-me:
- Fica para a próxima! Vai aparecendo.
Sigo-a com olhar, desesperado pela situação. Pretendo descobrir algo sobre a vida dela. Esqueci-me de olhar para as mãos, bolas! Uma voz interrompe a minha faceta de detective: Boa tarde, tem cartão cliente?
Olho para a caixa, entrego o cartão e volto a focar o corredor, de onde me retiraram a atenção.
Nada. Já não há sinais dela.
- É tudo? São 67 euros e 34 cêntimos! - ouço ao fim de alguns minutos, interrompendo os meus pensamentos.