escrita irregular
terça-feira, junho 26, 2007
  9 meses de blog - 1ª parte
Iniciei o mundo de trabalho longe de casa. Tive que alugar apartamento, um T1 confortável mas, como não tenho jeito para cozinhar, as refeições fazia-as fora. O almoço na cantina da fábrica e o jantar, umas vezes por lá, outras num pequeno restaurante, de um casal simpático. O marido servia ao balcão, fazendo a ponte entre a copa e a sala, tratando dos assuntos característicos, além das compras e dos pagamentos. A esposa era essencialmente cozinheira. No serviço às mesas tinham a ajuda duma rapariga.
Das primeiras vezes que lá jantei não tinha reparado nos encantos dela. A bata ou avental escondia-lhe as formas do corpo e a sua cara apresentava-se singela, sem pinturas, embora arranjada, no que eu julguei ser natural.
A relação que mantinha com todos era o mais simples e cordial possível, no que era retribuído. A rapariga servia-me à mesa, sempre atenciosa e delicada, muito sorridente, com uns olhos verdes vivos. Não era alta e por vezes nos dedos ou nos pulsos ornamentava-se com peças de ouro, o que era estranho. Aos poucos comecei a reparar, quando a minha refeição se prolongava mais do que o horário da rapariga, que algumas peças de roupa não eram adequadas a uma serviçal de restaurante. Tinha bom gosto e era sem a bata extremamente elegante.
Considerei esta minha observação uma estupidez de quem está fora do seu círculo de amigos e amigas, longe dos engates ocasionais ou da disputa de namoradas. Certo é que algo se alterou nela, pois a simpatia redobrou e o corpo dela começou a encontrar-se com o meu. Da primeira vez, estava de pé e senti-a a encostar-se a mim para passar. O corredor era estreito mas, não apertado. Pensei, tratar-se de um desequilíbrio. Aconteceu mais uma segunda vez. Fiquei a sorrir e ela olhando para trás, apercebeu-se.
Comecei a puxar mais conversa, a sentir mais o seu perfume. A bata deu lugar a um avental de serviço, colares e às vezes fios de ouro apareceram no pescoço. Estando sentado, várias vezes senti o seu peito a encostar-se à minha cabeça, alegando dificuldade em tirar ou colocar algo da mesa. Percebi o truque mas, não comentei.
Lentamente fui sabendo a sua vida, ficávamos na conversa depois do jantar, até ela sair. Tinha sempre pressa. Ainda a convidei várias vezes para prolongar a noite, “em máximo respeito”, disse-lhe várias vezes. Dizia-me que tinha muito que fazer em casa, que no dia seguinte tinha que trabalhar. Acumulava dois empregos, o de restaurante com outro, por isso tinha um bom rendimento, o que lhe permitia ter uma vida desafogada.
Insisti várias vezes, para o tal copo fora de horas. Sempre me recusou. Falei com os donos do restaurante acerca dela, queria saber mais sobre esse ser, que me começava a fascinar e a perturbar. Para eles era como se fosse filha. Tinha ido para ali jovem, muito jovem. Ajudou-os sempre. A certa altura, disse que o rendimento não era suficiente e foi trabalhar como repositora para uma grande superfície. Via-se que a vida dela tinha melhorado, pelo vestir, pelo apartamento comprado, pelas prendas que passou a oferecer. Fora isso, era muito simples, possuía um automóvel simples e era muito poupada e educada. Nesta última parte, concordei com eles.
O meu estágio profissional estava a acabar, faltava uma semana para completar o ano de trabalho, longe de casa. Tinha à minha espera a empresa familiar e toda uma vida de mordomias. Convenci o dono do restaurante a dar-lhe uma folga, para eu a convidar para um jantar. Ele acedeu, acrescentando que não saberia se ela aceitaria mas, que tudo iria fazer para que sim. A senhora disse-me para tentar de forma mais persuasora.
Insisti no convite para o tal copo. Mais uma vez disse-me, que não, que não. Não resisti a confrontá-la com a minha ausência dentro de dias. Ficou incomodada, disse-me que ficava triste por me ver partir. Era uma companhia agradável, um cliente distinto. Aproveitei os elogios para apresentar o convite para o tal jantar. Longe dali, em local aprazível. Ainda tentou dizer não, mas acedeu.
O jantar ficou marcado precisamente para o meu último dia. Tudo correu bem. Ela apresentou-se elegante, um encanto. Produzida quanto baste, nada parecida com a simples rapariga que servia no restaurante. Um aroma suave a perfume acompanhava-a. A noite esticou-se o suficiente, um bar dançante e o regresso a casa. Mesmo quando nos estávamos a despedir, agarrou-se a mim, chorando. Apertava-me contra si, pelo que percebi existir alguma mágoa e algum sentimento especial pela minha pessoa. As nossas bocas beijaram-se prolongadamente. Os nossos corpos indicaram querer algo mais do que os encostos do passado, ou os beijos da noite. Seguimos para minha casa. Tivemos uma noite maravilhosa, desgastante e longa. Algo não estava certo, naquilo tudo. No entanto, fiquei exausto e adormeci. Ainda a ouvi a contar-me algo, a sussurrar-me uma palavra ao ouvido mas, não fixei nada.
No dia seguinte acordei e não estava ninguém ao meu lado. Um bilhete perfumado tinha sido deixado por ela: Adorei, volta quando puderes. Espero-te.
Só voltei passado umas semanas, não devido à distância mas, por falta de tempo.
Procurei-a em casa e ninguém atendeu. Fiz horas para o horário do seu trabalho no restaurante e lá compareci. Os donos quando me viram ficaram felicíssimos. Olhei em redor, enquanto os cumprimentava e não a vi, estava outra rapariga a fazer o seu lugar. Não escondi o meu motivo da visita, perguntando por ela. A cara deles alterou-se e a senhora chamou-me à parte. Disse-me: foi-se, assim sem mais nem menos. Passado uns dias do senhor ir, ela apareceu aqui muito triste e até nervosa. Tinha que ir embora. Perguntamos várias qual o motivo. Nunca nos confessou. Ainda brinquei com ela, perguntando se ia atrás de si. Não e não. Tinha mesmo que ir. Não tinha problemas, com ninguém, sabia que ia fazer falta mas, tinha falado com uma colega, de confiança que podia fazer o lugar dela, aliás já a tinha substituído algumas vezes aqui no restaurante. Para nós foi um desgosto, era como se fosse nossa filha. Vendeu o seu apartamento, um péssimo negócio, passou uma procuração ao meu marido e indicou-lhe uma conta bancária, para depositar o dinheiro final da venda. Tudo muito rápido, parecia que se escondia de alguém, ou de algo muito mau. O que é certo é que ninguém a veio aqui procurar, até hoje.
Jantei por lá. A certa altura, lembrei-me de perguntar à sua colega, se sabia do seu paradeiro, ou do motivo para a sua rápida partida. Ela riu-se. - Espere um pouco. Trouxe um novo bilhete. Pelo cheiro a perfume, percebi ser dela, inconfundível. - Pediu-me para lhe entregar isto, quando viesse à procura dela.
- Prometi-lhe que jamais diria a alguém alguma coisa, por isso, peço-lhe que não insista comigo, acrescentou.
Entregou-me o bilhete. Abri-o. “Ainda bem que voltaste. Jamais irás compreender o meu desgosto. Desculpa a desilusão, a viagem em vão. Guardo-te como uma boa recordação”
Terminei a refeição. Preparava-me para pagar e a mão da nova empregada agarrou a minha. Disse-me algo assim parecido: como veio de tão longe e para não dormir sozinho, se quiser companhia e uma noite agradável, é só pedir-me!
Fiquei atónito. Perplexo pela atitude dela. Fui pagar, mais uma conversa longa a despedir-me dos velhotes. Entretanto, a nova empregada teve oportunidade de tirar os trapos do restaurante. A transformação em uma nova pessoa era visível. No entanto, tudo nela me parecia grotesco. As suas roupas, os adornos femininos, os sapatos, o perfume, a carteira tudo lhe assentava mal, faltava-lhe classe, simplicidade.
Deixei-a sair. Muito prazer, até à próxima. Dei mais duas de conversa e decidi telefonar a um ex-colega informando-o da minha presença na sua terra. Marcamos encontro mesmo ali, no restaurante, os donos não se importaram, eram uma simpatia. Bebemos uns copos por ali, só para justificar a demora do meu colega. Ao sair, expliquei-lhe o sucedido umas semanas antes. O motivo do meu regresso, a noite fantástica que tinha tido.
- Mau. Foi a resposta que obtive. - Anda daí beber uns canecos. Ficas a dormir lá em casa. É melhor esqueceres o que te aconteceu.
Caminhamos em direcção aos automóveis, no acesso dum carro preto, com uma janela entreaberta uma voz chamou-me: Então não vens?
Olhei para ver quem era. Nem mais, a nova empregada do restaurante.
O meu amigo puxou-me. - Esquece, pá. Esquece tudo, pá. Esquece essas gajas, pá. Podias ter-me contado antes, pá. Agora esquece. Não lhe ligues e esquece tudo, pá. Vais ter uma noite à moda antiga, vamos andando para nos encontrarmos com o resto do pessoal. Vais atrás de mim, ok. Esquece o resto, pá.
No dia seguinte, um pouco atordoado regressei a casa.
Nunca mais voltei aquela terra. Fiquei sem saber o que realmente tinha acontecido. Percebi que me tinha enganado com a pessoa, que tinha criado uma imagem incorrecta acerca dela. Só não percebi porque é que ela me tinha ocultado, ou melhor, talvez não o tivesse feito, eu é que adormeci, ficando sem saber o seu segredo.
 
Comentários:
Muito bem! Gostei do conto, Guerra (é um conto não é?), só não percebi o título. Vou aguardar com expectativa pela 2.ª parte.
 
Gostei bastante deste conto!Simples,mas com um toque enigmático e aberto a interpretações,o que é excelente.
O final,apesar de não ser totalmente original,é ,de todo,magnífico!
São estes "escritos" que mais gosto de ler de tudo aquilo que escreves.Continua!!!
Armando
p.s. Um dia destes falamos,ok?
Abraço
 
Bem o título... pois. Escrevi isto pensando chamar-lhe: A paixão (contributo para os 9 meses do blog), no que seria o 1º de dois textos.

Caro Armando,
Os epílogos por vezes não são fáceis de escrever, como deves compreender tenho as minhas dificuldades em articular narrativas. Mas, ao receber as vossas palavras vou continuando, sim senhor.
Brevemente apareço uma noite, já tenho saudades.
Um abraço a todos.
 
Fora de tema: Para quando aquele jantar de bloggers, comentadores, etc?
Um dia ...
 
é uma ideia interessante. há uma série de jantares que se falam e não se marcam.
quem alinha?
 
não se esqueçam de escolher um restaurante com um casal simpático a servir...
 
boa ideia
 
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