9 meses de blog - 1ª parte
Iniciei o mundo de trabalho longe de casa. Tive que alugar apartamento, um T1 confortável mas, como não tenho jeito para cozinhar, as refeições fazia-as fora. O almoço na cantina da fábrica e o jantar, umas vezes por lá, outras num pequeno restaurante, de um casal simpático. O marido servia ao balcão, fazendo a ponte entre a copa e a sala, tratando dos assuntos característicos, além das compras e dos pagamentos. A esposa era essencialmente cozinheira. No serviço às mesas tinham a ajuda duma rapariga.
Das primeiras vezes que lá jantei não tinha reparado nos encantos dela. A bata ou avental escondia-lhe as formas do corpo e a sua cara apresentava-se singela, sem pinturas, embora arranjada, no que eu julguei ser natural.
A relação que mantinha com todos era o mais simples e cordial possível, no que era retribuído. A rapariga servia-me à mesa, sempre atenciosa e delicada, muito sorridente, com uns olhos verdes vivos. Não era alta e por vezes nos dedos ou nos pulsos ornamentava-se com peças de ouro, o que era estranho. Aos poucos comecei a reparar, quando a minha refeição se prolongava mais do que o horário da rapariga, que algumas peças de roupa não eram adequadas a uma serviçal de restaurante. Tinha bom gosto e era sem a bata extremamente elegante.
Considerei esta minha observação uma estupidez de quem está fora do seu círculo de amigos e amigas, longe dos engates ocasionais ou da disputa de namoradas. Certo é que algo se alterou nela, pois a simpatia redobrou e o corpo dela começou a encontrar-se com o meu. Da primeira vez, estava de pé e senti-a a encostar-se a mim para passar. O corredor era estreito mas, não apertado. Pensei, tratar-se de um desequilíbrio. Aconteceu mais uma segunda vez. Fiquei a sorrir e ela olhando para trás, apercebeu-se.
Comecei a puxar mais conversa, a sentir mais o seu perfume. A bata deu lugar a um avental de serviço, colares e às vezes fios de ouro apareceram no pescoço. Estando sentado, várias vezes senti o seu peito a encostar-se à minha cabeça, alegando dificuldade em tirar ou colocar algo da mesa. Percebi o truque mas, não comentei.
Lentamente fui sabendo a sua vida, ficávamos na conversa depois do jantar, até ela sair. Tinha sempre pressa. Ainda a convidei várias vezes para prolongar a noite, “em máximo respeito”, disse-lhe várias vezes. Dizia-me que tinha muito que fazer em casa, que no dia seguinte tinha que trabalhar. Acumulava dois empregos, o de restaurante com outro, por isso tinha um bom rendimento, o que lhe permitia ter uma vida desafogada.
Insisti várias vezes, para o tal copo fora de horas. Sempre me recusou. Falei com os donos do restaurante acerca dela, queria saber mais sobre esse ser, que me começava a fascinar e a perturbar. Para eles era como se fosse filha. Tinha ido para ali jovem, muito jovem. Ajudou-os sempre. A certa altura, disse que o rendimento não era suficiente e foi trabalhar como repositora para uma grande superfície. Via-se que a vida dela tinha melhorado, pelo vestir, pelo apartamento comprado, pelas prendas que passou a oferecer. Fora isso, era muito simples, possuía um automóvel simples e era muito poupada e educada. Nesta última parte, concordei com eles.
O meu estágio profissional estava a acabar, faltava uma semana para completar o ano de trabalho, longe de casa. Tinha à minha espera a empresa familiar e toda uma vida de mordomias. Convenci o dono do restaurante a dar-lhe uma folga, para eu a convidar para um jantar. Ele acedeu, acrescentando que não saberia se ela aceitaria mas, que tudo iria fazer para que sim. A senhora disse-me para tentar de forma mais persuasora.
Insisti no convite para o tal copo. Mais uma vez disse-me, que não, que não. Não resisti a confrontá-la com a minha ausência dentro de dias. Ficou incomodada, disse-me que ficava triste por me ver partir. Era uma companhia agradável, um cliente distinto. Aproveitei os elogios para apresentar o convite para o tal jantar. Longe dali, em local aprazível. Ainda tentou dizer não, mas acedeu.
O jantar ficou marcado precisamente para o meu último dia. Tudo correu bem. Ela apresentou-se elegante, um encanto. Produzida quanto baste, nada parecida com a simples rapariga que servia no restaurante. Um aroma suave a perfume acompanhava-a. A noite esticou-se o suficiente, um bar dançante e o regresso a casa. Mesmo quando nos estávamos a despedir, agarrou-se a mim, chorando. Apertava-me contra si, pelo que percebi existir alguma mágoa e algum sentimento especial pela minha pessoa. As nossas bocas beijaram-se prolongadamente. Os nossos corpos indicaram querer algo mais do que os encostos do passado, ou os beijos da noite. Seguimos para minha casa. Tivemos uma noite maravilhosa, desgastante e longa. Algo não estava certo, naquilo tudo. No entanto, fiquei exausto e adormeci. Ainda a ouvi a contar-me algo, a sussurrar-me uma palavra ao ouvido mas, não fixei nada.
No dia seguinte acordei e não estava ninguém ao meu lado. Um bilhete perfumado tinha sido deixado por ela: Adorei, volta quando puderes. Espero-te.
Só voltei passado umas semanas, não devido à distância mas, por falta de tempo.
Procurei-a em casa e ninguém atendeu. Fiz horas para o horário do seu trabalho no restaurante e lá compareci. Os donos quando me viram ficaram felicíssimos. Olhei em redor, enquanto os cumprimentava e não a vi, estava outra rapariga a fazer o seu lugar. Não escondi o meu motivo da visita, perguntando por ela. A cara deles alterou-se e a senhora chamou-me à parte. Disse-me: foi-se, assim sem mais nem menos. Passado uns dias do senhor ir, ela apareceu aqui muito triste e até nervosa. Tinha que ir embora. Perguntamos várias qual o motivo. Nunca nos confessou. Ainda brinquei com ela, perguntando se ia atrás de si. Não e não. Tinha mesmo que ir. Não tinha problemas, com ninguém, sabia que ia fazer falta mas, tinha falado com uma colega, de confiança que podia fazer o lugar dela, aliás já a tinha substituído algumas vezes aqui no restaurante. Para nós foi um desgosto, era como se fosse nossa filha. Vendeu o seu apartamento, um péssimo negócio, passou uma procuração ao meu marido e indicou-lhe uma conta bancária, para depositar o dinheiro final da venda. Tudo muito rápido, parecia que se escondia de alguém, ou de algo muito mau. O que é certo é que ninguém a veio aqui procurar, até hoje.
Jantei por lá. A certa altura, lembrei-me de perguntar à sua colega, se sabia do seu paradeiro, ou do motivo para a sua rápida partida. Ela riu-se. - Espere um pouco. Trouxe um novo bilhete. Pelo cheiro a perfume, percebi ser dela, inconfundível. - Pediu-me para lhe entregar isto, quando viesse à procura dela.
- Prometi-lhe que jamais diria a alguém alguma coisa, por isso, peço-lhe que não insista comigo, acrescentou.
Entregou-me o bilhete. Abri-o. “Ainda bem que voltaste. Jamais irás compreender o meu desgosto. Desculpa a desilusão, a viagem em vão. Guardo-te como uma boa recordação”
Terminei a refeição. Preparava-me para pagar e a mão da nova empregada agarrou a minha. Disse-me algo assim parecido: como veio de tão longe e para não dormir sozinho, se quiser companhia e uma noite agradável, é só pedir-me!
Fiquei atónito. Perplexo pela atitude dela. Fui pagar, mais uma conversa longa a despedir-me dos velhotes. Entretanto, a nova empregada teve oportunidade de tirar os trapos do restaurante. A transformação em uma nova pessoa era visível. No entanto, tudo nela me parecia grotesco. As suas roupas, os adornos femininos, os sapatos, o perfume, a carteira tudo lhe assentava mal, faltava-lhe classe, simplicidade.
Deixei-a sair. Muito prazer, até à próxima. Dei mais duas de conversa e decidi telefonar a um ex-colega informando-o da minha presença na sua terra. Marcamos encontro mesmo ali, no restaurante, os donos não se importaram, eram uma simpatia. Bebemos uns copos por ali, só para justificar a demora do meu colega. Ao sair, expliquei-lhe o sucedido umas semanas antes. O motivo do meu regresso, a noite fantástica que tinha tido.
- Mau. Foi a resposta que obtive. - Anda daí beber uns canecos. Ficas a dormir lá em casa. É melhor esqueceres o que te aconteceu.
Caminhamos em direcção aos automóveis, no acesso dum carro preto, com uma janela entreaberta uma voz chamou-me: Então não vens?
Olhei para ver quem era. Nem mais, a nova empregada do restaurante.
O meu amigo puxou-me. - Esquece, pá. Esquece tudo, pá. Esquece essas gajas, pá. Podias ter-me contado antes, pá. Agora esquece. Não lhe ligues e esquece tudo, pá. Vais ter uma noite à moda antiga, vamos andando para nos encontrarmos com o resto do pessoal. Vais atrás de mim, ok. Esquece o resto, pá.
No dia seguinte, um pouco atordoado regressei a casa.
Nunca mais voltei aquela terra. Fiquei sem saber o que realmente tinha acontecido. Percebi que me tinha enganado com a pessoa, que tinha criado uma imagem incorrecta acerca dela. Só não percebi porque é que ela me tinha ocultado, ou melhor, talvez não o tivesse feito, eu é que adormeci, ficando sem saber o seu segredo.