escrita irregular
terça-feira, abril 17, 2007
  Divórcio 6
A minha mulher não dorme há dias. Está feliz, ansiosa. Pudera, 20 anos de tristeza, sem ver o filho, nem no Natal, nem em época alguma.
Chegou ao pé de mim a chorar, com uma carta na mão. Agarrou-se a mim a dizer: "é dele, ele vai voltar! Pediu para o aceitarmos!" Deu-me a carta para a mão, dizendo "não o vais negar! Lembra-te que ele não foi assim tão culpado". Claro que não o negaria. Esperava este gesto há muitos anos. Li o que ele escreveu, pediu e disse com uma voz seca, "cá estaremos prontos para ajudar. Conta à miúda." Quando a minha mulher saíu, as lágrimas apareceram-me nos olhos. Já não sou o mesmo, a miúda ajudou-me muito.
Fui muito duro com o meu filho, não aceitei o seu descuido. As explicações dele pareceram-me pouco convincentes. "Tiravas para fora, morcão" - gritava-lhe. Obriguei-o a trabalhar. Levou a mal, tinha um óptimo futuro como estudante, diziam-me. Revoltado, deixou de me falar. Quando se separou, passou por cá a contar o sucedido, queria apoio. Irritei-me com ele, afinal que homem era ele, nem uma marca na maquiavélica? Era a mãe da filha, disse-me.
- Aqui não ficas, vai para onde quiseres.
Foi, deixou a terra e nunca mais voltou.
Um dia entrei na antiga casa dele, pensando encontrá-la sem ninguém. Fui levantar os seus pertences. O relógio da cozinha estava parado. Comecei a ouvir ruídos no piso de cima. Aproximei-me com cuidado. Num dos quartos, pela porta entreaberta pude ver dois corpos a copular. A minha ex-nora com um marmanjo que desconhecia. Olhava para aquilo e enfurecia-me. Peguei na arma (na época andava armado, como eu mudei). Reflecti, no meio ira, que se os matasse ali o culpado seria o meu filho. Seria ele o principal suspeito, certamente sem nenhum álibi. Esperei na casa de banho pelo gajo. Normalmente, são os homens os primeiros a limpar-se. Assim foi, ainda estive lá um bom bocado, no escuro, para pregar um susto de morte ao cabrão.
Quando entrou, sentiu uma arma a encostar-se à nuca.
- Se te mexeres ou gritares, nunca saberás quem te tramou, fica quieto e ouve, meu caralho - foram as minhas palavras. Já rebentei cabeças melhores que a tua, acrescentei.
- Vais-te limpar e voltas para dentro, como se nada tivesse acontecido. Não és maricas, pois não?
O gajo tremia.
- Ouve, acalma-te. Vais para dentro e com entusiasmo vais propor aquela puta, que vá contigo. Vais ficar com ela, levá-la daqui embora, vais propor-lhe um mundo melhor. Ela agrada-te, é dada à putice e isso agrada-te, não é cabrão? Nem respondas, não te quero ouvir um pio. Mexe o braço direito para dizer que sim e o esquerdo para dizer que não.
Levantou o direito. Se levantasse o esquerdo, matava-o.
- Outra coisa, a filha fica cá. Ai dela se a leva com ela, eu mato-os a todos!
Nesta altura encostei a arma com mais força à nuca.
O braço direito levantou-se, várias vezes.
- Vais direitinho ao quarto e propor-lhe o teu plano com calma, com voz tranquila e convincente, ok?
Fui para outro quarto, onde estava a minha neta a palrar no berço, a inocente.
Ouvi a conversa, ela aceitou. Saí da casa.
No dia seguinte fui ter com o meu ex-compadre. Entrei na padaria, um silêncio imediato.
- Venho falar consigo.
Entramos no escritório, ao sentar-me coloquei a arma à vista.
- A nossa neta vai viver comigo. A minha mulher precisa dela, pois está desgotosa com tudo o que aconteceu e temo por ela. Vê algum problema nisso?
Abri o casaco e a mão direita encaminhou-se para a arma.
Respondeu-me que não. Não queria mais problemas, para desgosto já tinha a sua dose.
Apertámos a mão. Nunca mais o vi. Passados uns anos fecharam a padaria. Mudaram de terra e desapareceram. Há uns anitos, a irmã passou lá por casa e contou que tinham falecido, os dois num acidente de viação.
Hoje chega o meu filho, vou abraço-lo com força. Ele vai perceber que tudo está sanado. Vou pedir-lhe desculpa por tudo. Levá-lo à caça, à pesca. Ele precisa de se distrair. Num mês vai ficar como novo. Não está nada louco, que ideia. O regresso vai fazer-lhe bem.
Disse que vinha acompanhado de dois filhos e quem o trás é a esposa dele, que não é mãe das crianças.
Hoje, vou perceber isso melhor.
A casa vai ficar cheia. A minha mulher vai ficar feliz. Se não fosse a pequena tinha morrido, com certeza.
Já não sou o mesmo, a miúda ajudou imenso. Espero que ela fica feliz ao conhecer o pai, finalmente.
 
Comentários:
secretamente exijo momentos de solidão para continuar a ler...
 
e então!?
 
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